Água Santa

Ele tinha ares de pedra e eu acordava sempre com resquícios da sua poeira pelo meu corpo que eu cuidava em tirar ao longo da manhã.

Juntos, acordávamos costumeiramente. Na verdade, era eu quem o acordava porque o insistente alarme do celular já não era suficiente. Ele tinha ares de pedra e eu acordava sempre com resquícios da sua poeira pelo meu corpo que eu cuidava em tirar ao longo da manhã. Mas, neste dia, antes de acordá-lo, especificamente neste dia, um ruído aquoso, rítmico e insistente, atrapalhou-me o planejamento matinal. Como manter-se a mesma? Ecoava das profundezas, um silêncio oco… sufocante e seco. Impossível de não se ouvir.

Mesmo turvada dos olhos, procurei esmiuçar sobre o paradeiro da praga que se revelava à surdina. Varri com o olhar a geografia do quarto que mantinha a sua superfície intacta. Aventurei-me para fora, então, quando descobri de onde vinha o tal barulho. A porta entreaberta do banheiro delatava o jogo: duas gotas de água solitárias, consecutivas, desesperadas, cíclicas, lançavam-se da torneira aluída e gasta em direção ao ralo da pia.

Foi isso que o meu olhar constatou, estarrecido, suspendido o movimento, por quase um minuto. Algo simples. Algo que acontecesse nas casas das melhores famílias. Algo… assim causou tamanho assombro? Tripudiei de mim mesmo, fazendo cessar a liberdade das gotas ao fechar corretamente a torneira aluída e gasta. Dei as costas, e voltei para o quarto. Era preciso acordar o outro que, em meio a tudo isso, nem se mexia na cama. Um quase morto!

Já passara do horário costumeiro e o dia não seria mais o mesmo… Porém, ao entrar no quarto, súbito, tornou-se gelo o meu coração. Paralisei, ouvindo novamente o oco-sufocante-seco-rítmico-insistente-aquoso-desesperado ruído das gotas de água em liberdade. Decididamente, era a hora de trocar a torneira aluída e gasta por outra nova, pensei, refazendo o caminho que me levaria ao banheiro.

Pia seca…

Afastei a porta e nada! Nem a primeira, nem a segunda gota. Pia seca, conforme deixara momentos antes de sair, e ainda assim o ruído inquietante ecoando, ecoando, ecoando, ecoando, ecoando, ecoando… Percebi a boca seca. Não havia saliva. Eu tinha sede e pressa.

Tornei a abrir a torneira aluída e gasta e comecei a sorver desbragadamente a corrente de água que por ali jorrava. Com tanta força, com tanto viço, com tanta alegria jorrava não apenas duas, mas muitas, incontáveis, indissociáveis, diluídas umas nas outras e agora jorravam dentro de mim, rápidas, tornando-me também um jorro, incontrolável. E agora não mais o ruído, mas música aos ouvidos e a sede. Aquela que me secava a boca, ainda perdurava e era preciso mais, mais-água-mais-jorro-mais-alegria-mais-viço-mais-força-mais-fluidez-mais-intensidade-mais-mais-mais-…

Avidamente, encontrei sobre a pia a tampa para o ralo e coloquei-o, interrompendo o sugar mortal para o esgoto. Era preciso conservar límpida a água que jorrava da torneira aluída e gasta. E ela se conservou e ela escorreu e ela inundou a casa inteira, umedecendo móveis, umedecendo eletrodomésticos, umedecendo o cimento, umedecendo os rodapés, umedecendo…

Só o homem-pedra, fincado sobre a cama, permanecia seco, por pouco tempo. Desatei a encher baldes e mais baldes com a água-santa que jorrava sem cessar, aprumei os passos em direção ao quarto e lá, na beirada da cama, transformei os baldes em cachoeira e fiz com que a água batesse na pedra, a fim de que ela ganhasse vida. O homem-pedra, assustado, levantou-se da cama, com a sua qualidade mineral, mas ali não havia vida. Não havia nada. Era pedra e pedra não sacia a sede.

Abri a porta de casa…

As gotas, juntas, cantavam a sua sinfonia e eu dançava, livremente, pela casa umedecida de vida. Até que o homem-pedra, fechando a torneira, trouxe de volta o oco. Trouxe de volta as duas gotas solitárias, que se arremessavam, em desespero, uma atrás da outra, consecutivamente, ciclicamente… E não era mais possível suportar, não era. Abri a porta de casa e escorri para fora junto com a água que impulsionava os meus pés que varreram a rua, sendo seguidos pela chuva que se precipitava por cima de mim.

 

 

(Este é um texto de um dos colaboradores. Os comentários, opiniões e colocações são de inteira responsabilidade do autor. Não necessariamente refletem a opinião deste blog)

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