Pé de mar

Ainda cedo, a gente descia do ônibus.

Já sem camisa, meus irmãos se aproveitavam do sol numa correria desenfreada de canelas finas enquanto eu, mais novo, era arrastado pela mão por minha mãe que gritava para que eles nos esperassem. Tinha medo de perdê-los naquele mundaréu de gente. Ia dar um trabalhão danado procurar pelos dois com aquela areia toda queimando os nossos pés. Mas meus irmãos, aos chutes, já cortavam o mar, indo certeiros pra um mergulho que, nem de longe, dava pra se esconder naquela imensidão. De cá, minha mãe cuidava para que eu, naquela idade, não me perdesse…

Não me lembro que idade eu tinha, só que ela ficava feliz por achar que alguém a obedecia. Eu queria mesmo era correr, me livrar logo daquelas sandálias havaianas quentes cheias de areia e refrescar meus pés nas águas geladinhas que vinham até a beirada. Quando dei por mim, minha mãe já estava com a toalha estendida no chão de areia umedecida, porque ficar em mesa de bar com cadeira de se deitar e tudo ela não ficava. Tinha que pagar a conta depois e a gente só tinha mesmo o dinheiro do ônibus, uns trocados pra comprar picolé e um bronzeador vagabundo. Sim, bronzeador. Ajudava a tirar a cara de anemia do rosto e, por isso, tirando a minha roupa, minha mãe me besuntava todo com aquele óleo que parecia mais era ser de cozinha.

Meus irmãos voltaram correndo pra junto da gente.

Os dois bolavam na areia bem perto de minha mãe. Deu até pra ela torcer a orelha de um e dar um cascudo no outro pra deixarem de ser ousados. E eu, sentado, tostando no sol, cutucava a areia, fingindo gostar de fazer castelo. Sentia mesmo era a maresia me chamando. Um arrepio de brisa beijando minhas costas… Olhei para o mar e me senti parte dele.

Sem que minha mãe visse, corri de pé inteiro, deixando marcas na areia cada vez mais molhada e me dei conta de que eu gostava de ter os pés lambidos pelas línguas de sal que o mar tem. E que eu gostava daquela imensidão e das pessoas naquela imensidão e do cheiro daquela imensidão e da liberdade daquela imensidão… E, quando não consegui mais ver os meus joelhos,

eu

parei

.

Fiquei

com

medo

.

Nem nadar eu sabia. Se o mar me puxasse pro fundo, ninguém me escutaria gritar e ia dar um trabalhão danado pra minha mãe me procurar naquela imensidão toda… Pra não perder o equilíbrio, fui sentando bem devagar ali mesmo. Fui sentindo as línguas de sal lambendo o resto do meu corpo. Estavam tão geladinhas! Tapei o nariz com a mão e, quando estava bem cheião, abaixei a cabeça com tudo!

Mergulhei do meu jeito, sem cortar o mar, como fizeram meus irmãos, porque podia doer.

E pareceu que eu ouvia um voz dizendo alguma coisa para mim, mas eu não me lembro o que era, só sei que eu me sentia como se estivesse em casa. Tentei abrir os olhos lá embaixo, mas ardeu tanto que não aguentei ficar ali daquele jeito.

Fui voltando bem devagar, admirando aquela imensidão toda, como se eu mesmo fosse a água que

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pelo meu corpo de volta pra aquela imensidão toda sem fim. Fui voltando

 

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, mas também com medo de levar um cascudo ou um puxão de orelha. Sentei-me junto a minha mãe.

Ela, calada estava, calada ficou. Toda deitada na toalha colorida pra pegar uma cor. Meus irmãos, agora, jogavam bola com coco vazio, esquecido na areia. Voltei a cutucar o chão, torcendo para que a água viesse até onde estávamos só pra eu sentir novamente as lambidinhas do mar. Mas ainda era cedo demais pra maré encher e minha mãe tinha deixado o almoço pronto antes de sair de casa. Não demorou muito e o vendedor de picolé passou com a sua sineta. Compramos um de mangaba, dois de amendoim e um de maçã-verde, e nos sentimos felizes por poder gastar dinheiro na praia.

Voltamos antes do horário de almoço para que a barriga não começasse a gritar desesperada. De dor mesmo, já bastava a da areia quente queimando os pés, agora mais quente ainda com o sol quase ficando a pino. Entramos no ônibus. Meus irmãos, aproveitando a multidão, passaram por baixo da catraca. Eu e minha mãe cruzamos juntos, eu todo espremidinho enquanto ela girava a borboleta. Adormeci no colo de minha mãe sem me dar conta de quanto tempo durou o percurso até a nossa casa.

Quando chegamos, fui tomar banho.

Vesti roupa limpa para o almoço requentado e, sentado à mesa, senti como se o meu corpo estivesse dentro daquele cheião todo e as vozes do mar voltassem a me chamar. Elas estavam dentro de mim, as línguas de sal. Indo e vindo, com toda a sua lambeção. Senti que estava prestes a nascer em mim um pé-de-mar.

Não contei nada a ninguém, com medo de que os meus irmãos, aos chutes, quisessem cortar o mar que havia dentro de mim num mergulho só.

 

 

 

(Este é um texto de um dos colaboradores. Os comentários, opiniões e colocações são de inteira responsabilidade do autor. Não necessariamente refletem a opinião deste blog)

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